Monday, September 24, 2007

A seriação não é séria

Começo por pegar num tema que foi levantado pela Rita, no seu comentário a um destes posts: a necessidade de emigrar por ausência de financiamento.

Nada é mais castrante do que não confiarem em nós. E nada é mais intelectualmente castrante do que nos considerarem inferiores com base em critérios mais do que discutíveis. O estado português, por intermédio da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), administra os dinheiros adstritos aos trabalhos científocos a desenvolver em Portugal. E esta fundação, a FCT, confia a responsabilidade de avaliar o mérito de candidatos a financiamento (sejam eles cidadãos individuais, grupos de cidadãos, ou centros de investigação) no sentido de os seriar, com base em alegados critérios de mérito e de qualidade. Pois bem, estamos muito longe da verdade, embora eu próprio reconheço que w FCT já enveredou pelo bom caminho, se bem que muito lentamente, com a obrigatoriedade de avaliar projectos por intermédio de jurís internacionais.

A questão está nos critérios, pois ninguém me pode garantir um sistema 100% justo. Mas eu nem pretendo um sistema 100% justo, só pretendo um que seja revisto sempre que uma falha é observada, coisa que não se passa nos concursos desenvolvidos na FCT. O critério-mor, para atribuição de bolsas individuais de doutoramento, é a média final de licenciatura, que é um critério objectivo, e de fácil comparação. No entanto, surjem sistemática e inevitavelmente, complicações várias na aplicação deste critério, pois as médias são valores numéricos, que variam ao longo dos anos, e de curso para curso, e de universidade para universidade. Não é possível dizer que alunos com iguais médias mas provenientes de licenciaturas diversas valem o mesmo. Por vezes, têm valores intelectuais muito diferentes e que se podem constituir como críticos para a qualidade dos trabalhos a desenvolver. E utilizar este critério como o mais importante num processo de avaliação de mérito, é, no mínimo, estúpido - 1º, porque é falacioso; 2º, porque é injusto; 3º, porque pode ser falseado ou torneado por inflação artificial das notas; 4º, porque comprovadamente dá problemas, e ninguém tem a coragem política ou se dá ao trabalho de o mudar.

Desenganem-se aqueles que acham que o Estado é pessoa de bem. O estado compactua com injustiças, e longe de as mudar, absorve-as como parte integrante do processo, e faz um finca-pé tremendo no sentido de impedir a mudança. Resultado: os cérebros são expulsos, ou fogem porque não conseguem financiamento. Em contrapartida, aqueles cursos em que 90% dos alunos tem média de licenciatura igual ou superior a 16,0 valores, vêem os seus pupilos financiados, em detrimento de outros quiçá com melhores qualidades para desenvolver ciência. Como é possível este estado de coisas, sem que haja um critério uniformizador no processo de avaliação? Compara-se o incomparável para beneficiar por vezes os menos aptos. Claramente!

Assumo que comparar valores seja mais fácil para os avaliadores da FCT, mas não chega. Isso será o mesmo que reduzir as suas funções a meros contabilistas, coisa que não aceito. Primeiro, porque são muito bem pagos para avaliar as coisas, e segundo porque são professores universitários com conhecimento de causa.

Monday, September 17, 2007

A noção do mérito

Recentemente tive o prazer de ler uma reportagem sobre vários cientistas nacionais, radicados há já largos anos no estrangeiro (nomeadamente em países anglo-saxónicos) que ousaram regressar a Portugal, no sentido de exercer a sua actividade profissional de investigador. Li com toda a atenção do Mundo as considerações, as experiências, as vivências, as opiniões, os motivos dos respectivos regressos e as dificuldades antecipadas/esperadas num país de incomensurável atraso intelectual que é o nosso. E para cabeçalho desta reportagem, e emoldurada a letras pomposas, ficaram sempre as motivações das instituições nacionais que os convidaram e acolheram, como "excelência", "criação de grupos de elevada qualidade" e demais considerações superlativas no sentido de serem apostas ganhas à partida.

Pois bem, eu não acho que estes cientistas dos quais a reportagem falou sejam bons; eu tenho a certeza de que são excelentes. E compreendo e aceito com entusiasmo que se integrem no Sistema Científico Nacional como qualquer outro bom cientista que possa existir. Para que conste...

Agora o reverso da medalha: será que a excelência só existe lá fora, no tão português emigrante que regressa? Quantos cientistas excelentes existem em Portugal, e que pelos mais variados motivos optam por se doutorar nas nossas Universidades e nos nossos centos de investigação, e que não almejam nunca a terem a fama e o proveito dos filhos pródigos? Aqueles aos quais nunca são dadas condições de brilhar em pé de igualdade? Atente-se que não retiro aos cientistas que voltam qualquer mérito, antes me ocupo a dizer que o sistema nacional (conhecido por não premear o mérito nem incentivar a criatividade, a inovação e a inventividade) os impede de assumirem o seu real valor, caso nã emigrem. Os cientistas que regressam tiveram o mérito, a sorte ou o feliz acaso de se integrarem em equipas que lhes permitiram crescer do ponto de vista intelectual e científico, e assumirem-se com líderes e cientistas com inegável qualidade. Caso tivessem permanecido em Portugal, seriam mais um número no mar de investigadores da penumbra, aos quais os chefes prolongam os planos de trabalho para usufruirem dos "doces prazeres da escravatura". Portugal não é um país justo: em Portugal minam-se as ideias, e reduzem-se os méritos a mesquinhas relações de poder parasitário e contraproducente. A qualidade, principalmente quando emana de um subalterno, é inimiga do estatuto, torna-a um alvo a abater, é motivo de silenciamento e de ostracismo e exclusão. A qualidade é inimiga da "nossa" perfeição, porque o sistema perfeito nacional é aquele em que nada se questiona, nem tão pouco a estupidez.

Pergunta: não haverá gente boa em Portugal? Claro que há. Será que seremos tão provincianos ao ponto de achar que em Portugal, e para se ser bom, temos de arrecadar o conhecimento, o mérito e a reputação lá fora, para depois re-ingressarmos pela porta grande e com tapete vermelho no sistema? Será que embarcamos burros e voltamos génios? Será que ainda não ultrapassamos a síndrome da mala de cartão, em que tudo o que aparenta ser estranjeirado é bom? Será que só nos poderemos assumir na qualidade depois de nos sujeitarmos ao Purgatório do exílio?

Quanto perde o país com este espírito? Imenso, uma quantia avassaladora e inimaginável de know-how. Quem ganha com isto? Os medíocres.

Uma nota curiosa: recebo quase diariamente e-mails a pedir a divulgação de posições de docência de Universidades nos mais variados recantos do Mundo. Nunca recebi uma única para uma posição de docência em Portugal. Porque será? É a tal noção do mérito que ainda não temos, e que não teremos tão cedo.

Sunday, September 2, 2007

Ainda as responsabilidades do Estado

Nem mesmo o mais fiel acólito da ideologia neo-liberal gostaria de ver uma sociedade ocidental totalmente desregulamentada. O papel do Estado é assim fundamental, quanto mais não seja na harmonização e arbitragem das relações entre os cidadãos. Só assim se justifica que existam tentativas de concertação social, em rondas negociais anuais, que visem o estabelecimento de mútuo acordo dos assuntos que dizem respeito ao trabalho. A partir dessas rondas, são adoptadas resoluções e, acima de tudo, há preceitos que ganham força de lei, com o surgimento da imprescindível legislação laboral.

Mais uma vez, na Ciência, não existe nada disto. E até certo ponto, existiu (e chamo a atenção para o tempo verbal - no passado) uma justificação aparente para esta questão. Quando o financiamento da ciência era uma questão absolutamente marginal na nossa sociedade, eu até poderia aceitar que a regulação da sua actividade fosse incipiente. Quando o Estado financiava a actividade de algumas dezenas ou pouquíssimas centenas de indíviduos, e ainda por cima com uma quase garantia de empregabilidade no final do período financiado, o cenário das bolsas era, DE FACTO, transitório. Esta natureza fez com que a necessidade de regulamentação das relações nunca fosse assumida. Mas agora???? O Estado, no que à investigação nacional diz respeito, é o maior empregador nacional, financiando directamente largos milhares de investigadores. Assim, não é de todo aceitável que a instituição Estado se divorcie do seu papel de parceiro social e ignore, de forma sistemática e com o maior dos descabidos descaramentos, esse seu papel. Modernidade, equidade e justiça são conceitos que não se coadunam minimamente com abusos próprio da uma ditadura sul-americana, e que o Estado permite diariamente nas suas próprias instituições de investigação científica. E vejam: apregoando bandeiras como as do choque tecnológico, parcerias com MITs e Carnegie Mellons, acordos com Fraunhofer Institutes...

O trabalhador da ciência nunca é reconhecido como tal, e a própria terminologia "trabalhador"constitui verdadeiro cavalo de batalha há mais de uma década para a nomenklatura científica nacional, e apesar de sérias recomendações da União Europeia no sentido de se considerar estes trabalhadores como detentores dos direitos e garantias de todos os demais. E a estratégia é simpes: é a da avestruz, se o problema não se vê, então é porque não existe; se o investigador não é um trabalhador, então não tem os direitos dos trabalhadores. Simples, e inovocam-se argumentos giríssimos, como o facto de que o investigador científico está "em formação". Se virmos que, hoje em dia, todas as estratégias empresariais e outras, falam de aprendizagem ao longo da vida, posso concluir que o próprio Ministro da Ciência estará em formação - logo, não deve receber um salário, mas antes uma bolsa, e a 12 meses... de 745€ mensais + seguro social voluntário indexado ao salário mínimo...

Mas isto até nem é o mais grave. O mais grave é a total falta de protecção social. E até calha bem que a questão da flexisegurança esteja em discussão quase permanente em Portugal (só para situarmos o conceito), porque na Ciência o que existe é a flexi-insegurança, e por total omissão do Estado. O Estado dá dinheiro para que se investigue, mas não controla minimamente as relações que se estabelecem dentro dos próprios laboratórios. E num país como o nosso, de saudosistas e aspirantes a Salazares, desregulamentar é o mesmo que abrir a porta a todas as formas de exploração e de abuso. É confrangedor observar a situação de algumas instituições de investigação, integral ou parcialmente financiadas pelo Estado (alegadamente para servir "os interesses estratégicos nacionais") em que os chefes são imperadores de algibeira, mandando e desmandando, decidindo arbitrariamente qual o futuro dos seus colaboradores, e sem precisar de dar qualquer justificação para os seus actos. Para despedir um bolseiro do Estado, é tão simples como uma carta dirigida à entidade financiadora do próprio Estado - e está o gajo na rua, limpinho!!! E estas cartas são instrumentalizadas, na base do "ou te portas bem, ou como eu decido a meu bel-prazer, tens de ter cuidado". E ninguém pede contas, ninguém investiga as razões do conflito, ninguém arbitra, ninguém define compensações para a parte que mais vulgarmente sai lesada que, é a do trabalhador da ciência, naturalmente.

Se for ao contrário... O Estado criou uma entidade virtual, que deveria apurar as reais condições em que o conflito existiu. No entanto, atentem por favor nas minhas palavras, pois é uma entidade completamente virtual, nunca regulamenteda, que nunca vi em acção. Agora despedimentos baseados em critérios abusivos e em resultado de abusos de poder discricionário, são mais do que muitos.

No próximo post falarei das péssimas condições em que alguns grupos de trabalho, pagos pelo Estado, trabalham, com óbvio prejuízo da saúde dos investigadores.