Wednesday, April 30, 2008

Vocações ou a falta delas

Este talvez seja dos posts mais complicados de escrever. Porque joga com aspectos muito sensíveis das opções de vida de muita gente, e pode fazer com que alguem se possa sentir atingido com algumas das considerações aqui tecidas. No entanto, considero que talvez seja dos aspectos mais centrais do deplorável panorama científico nacional. E falo da questão das vocações.

Conheço centenas de investigadores, e contam-se pelos dedos de duas mãos aqueles que considero terem uma vocação adequada ao desempenho da investigação. E vocação compreendo como um conjunto de características que incluem, simultaneamente, inteligência, abnegação, capacidade de trabalho e de auto-sacríficio, imaginação e criatividade, grande capacidade de observação e resistência à adversidade. Sem a conjugação de, pelo menos, algumas destas características, será sempre impossível fazer investigação de forma plena. E o problema é que aquilo a que por vezes assisto é pessoas a fazerem passar-se por investigadores de ponta sem haver a conjugação de nenhum destes factores. E vejo gente que só faz investigação porque não tinha outra ocupação à qual se dedicar. Isto é péssimo. Nem consigo imaginar razão pior para se fazer investigação.

O mercado de trabalho está inundado (ou nunca esteve sequer preparado para absorver) licenciados de determinadas áreas do conhecimento. Pelo menos, falo do mercado de trabalho nacional. As universidades formam levas de licenciados sem qualquer aplicação prática e imediata, que só servem para aumentar o número de desempregados, por um lado, ou o número de candidatos a bolseiro, por outro. É óbvio que existe uma desadequação entre oferta e procura, e entre aquilo que a investigação necessita e o que os licenciados aspiram. E é deste caldo de desadequações que os fazedores de sonhos se aproveitam, para promover ilusões de que pelo caminho da investigação patrocinada pelo Estado se consegue ir adiando a verdadeira questão de fundo, que é a incapacidade em encaminhar todo este manancial de cérebros para algo mais palpável do que uma bolsa. Não estou contra os bolseiros, estou é contra esta política de que mais vale ter uma bolsa do que nada; porque ter "nada" não deveria nunca ser opção.

Convenhamos: eu sei que nunca serei um excelente jogador de futebol. Isso só está ao alcance de alguns. Aceito-o e compreendo-o. O mesmo raciocínio deveria estar subjacente a todos os que consideram a licenciatura condição sine qua non para a felicidade, para a prosperidade e para serem felizes na vida amorosa. Licenciatura ainda hoje é panaceia. Esta visão institucionalizou-se e ganhou força de dogma. É pelo facto de o acesso ao ensino superior se ter democratizado, banalizado, abandalhado e facilitado que se permite que qualquer indíviduo possa ter a pretensão de se licenciar, e de almejar a vôos intelectuais para os quais manifestamente não foi talhado. E depois é um vê-se-te-avias para arranjar emprego, e tudo vale, incluindo inundar os centros de investigação. Muitos dos mentores de algumas licenciaturas públicas são o principal obstáculo à modernização do sistema: nunca, por intermédio de uma análise sistemática, fria e racional com base nos pressupostos das necessidades do país e da oferta formativa, conseguem chegar à evidentíssima conclusao de que aquilo que criaram é inútil, e, consequentemente, passível de ser extinto. Somos assim confrontados com cursos sem grande empregabilidade, quando a têm. Neste ponto, surte ainda bestial efeito a inflação desmedida das médias de curso, garante máximo de que, pelo menos, o efeito paliativo da bolsa se fará sentir. Vivemos assim uma bolsa-dependência, para escamotear o défice de empregabilidade crónica que grassa neste país. E daqui resulta o triste facto de termos, quase literalmente, todo o cão e gato (desde que cumpra a meta estatística de ser detentor de uma "boa média"; reparem no vício terrível de que não é preciso ser brilhante, basta parecê-lo) a aceder a posições de investigação que deveriam estar reservadas unicamente aos mais capazes. Depois é vê-los, 15 dias antes do final da bolsa, sem perspectivas de emprego real, a pensar em prolongar a agonia com o providencial balão de oxigénio que é... uma outra bolsa!!!

Monday, April 28, 2008

... com a agravante de...

Ainda a propósito da minha última intervenção: chegou-se ao ponto caricato de termos excelentes investigadores contratados a prazo (e com a certeza de que serão enviados para o desemprego no final dos respectivos contratos de trabalho), que são claramente MUITO melhores do que os directores do departamemto dos LAs aos quais estão afectos. Eu conheço vários casos destes, em que os investigadores auxiliares estão a anos-luz, em termos profissionais (pesando o grau de conhecimentos científicos, ética, inteligência, capacidade de trabalho e de orientação de equipas) do que os chefes. E tudo isto se passa a coberto do Estado, que cria, patrocina e autoriza estes verdadeiros contra-sensos, com óbvio prejuízo da inteligência nacional, das empresas, do emprego e do nosso bem estar geral.

Eu creio que isto deveria bastar para que uma geração sub-40 se revoltasse. Mas parece que não.

Thursday, April 24, 2008

Democracia? Não, obrigado

O título deste post bem podia ter saído das memórias de um qualquer ditador sul-americano patrocinado pela CIA na década de 70. Mas não, quis o destino que eu aplicasse este epítopo aquilo que considero uma das maiores falácias do sistema científico nacional, que são as chefias dos departamentos dos Laboratórios Associados.

Quando surgiu a alegada panaceia que se materializou e consolidou no conceito do "Laboratório Associado", a ausência de massa crítica a nível nacional de peritos nas mais variadas áreas científicas obrigou a que a fossem contactados os presumíveis especialistas, que só existiam nas universidades públicas portuguesas. Naturalmente, estes docentes (e friso bem o conceito de docentes) aproveitou a oportunidade virgem de terem sob a sua alçada verdadeiros laboratórios de elevada produtividade, e sem os constrangimentos habituais que as universidades, costumeiramente avessas à inovação e à competitividade (por colocar em causa o status cristalizado de alguns, uns poucos - já tantas vezes aqui retratada, esta realidade...) lhes impunham. Assim, surgem verdadeiras comissões instaladoras de reconhecido mérito, que, segundo o conceito inicial, seriam propgressivamente substituídas (ou trabalhariam em colaboração próxima) com verdadeiros cientistas não docentes no sentido da prossecução dos objectivos que haviam ditado a sua génese. Pois, mas hoje o que se vê não é isso. Bem pelo contrário, o que se vê são feudos que se transferem das universidades para os LAs, se eternizam e se amplificam fora dos espaços das universidades, que, e apesar de tudo, ainda controlavam pela força da lei as actividades desempenhadas. Os LAs são, por vezes, locais em que o pior obscurantismo grassa, a coberto da alegada competitividade selvática de que (alguma) ciência carece. Pelo menos, a acreditar em alguns.

E eis-me aqui chegado, a questionar o que faz com que as direcções dos departamentos dos LAs estejam sob a alçada de um dado indíviduo. Não leio nos estatutos de nenhum LA como o director do laboratório é eleito, ou nomeado, ou entronizado ou endeusado. Como se pode chegar a este ponto, em que alegadas estrutyuras informais se mantenham de pedra e cal, mesmo por vezes gerindo milhões de euros, gerando contratos de trabalho e prestando serviços ao Estado? E como se permite a eternização de chefias, sem haver o mínimo preceito democrático? Foi tão somente uma questão de terem chegado primeiro? Porque isto é feudalismo no seu estado mais puro.

Aqui fica a questão a debate: será que nós, cientistas, não merceremos ser tratados em democracia?

Wednesday, April 23, 2008

As piadas das hienas

Este Portugal dos Pequenitos em que alguns catedráticos habitam é de facto piadético. Tão piadético, tão piadético, que só murros nas ventas poderiam fazer parar de rir. É um país em que alguém que tenha a veleidade de organizar um evento para o qual não convide, com direito a tapete vermelho e Moet et Chandon, algumas das vacas sagradas da nossa praça científica, arrisca-se a ter o evento boicotado e até sabotado.

São como os eucaliptos, estes sujeitos, secam tudo em seu redor. Ou como as árvores das florestas tropicais, que pela sombra fazem mirrar a concorrência. Isto é um problema educacional. E que quanto a mim se resolve unicamente pela via das bengaladas, à boa moda dos gentlemen do século XIX. Desculpem esta minha veia pró-violência, mas há momentos em que apetece mesmo esbofetear publicamente algumas criaturas. A título meramente correctivo, e com direito a cobrar bilhetes de bancada.

Por experiência vos falo.

Sentido crítico

O Nobel português José Saramago saiu da sua hibernação cívica para nos brindar com mais uma sentença da portugalidade. E fez muito bem, pois a crise que o país atravessa se baseia exactamente no cerne das objecções levantadas pelo escritor. Vemos situações exemplificadas pelo celebérrimo "dá-me o telemóvel já!!", vemos contratações de ex-governantes por grandes corporações das mais variadas áreas, vemos esquemas de corrupção generalizados por todo o País, inclusivamente na Ciência, que é a área que nos toca. E alegremente nós, os cidadãos honestos, honrados e cumpridores, que tentamos todos os dias escapar aos tentáculos do poderoso polvo da falta de ética e da falta de vergonha na cara.

A falta de sentido crítico é algo que é profundamente paralisador do panorama social. Eu posso conceber opiniões diferentes, até opostas da minha; o que mais lamento é a ausência de opiniões, de perspectiva, de sentido do certo e do errado. Não consigo aceitar a falta de propostas, a falta de alternativas, o estaticismo, o sentido de que tudo está mal e nada há a fazer, como se o destino que nos foi traçado fosse um dogma inquestionável e imutável. Não aceito, com a placidez e bonomia de alguns, a injustiça, a corrupção, a compreensão de que as coisas funcionam de modo a beneficiar alguns e prejudicar outros. Não acredito na recompensa divina do Céu para os sofredores, e do Inferno para os pecadores, pois acho que a justiça faz-se aqui. Não creio ser capaz de suportar o conceito deste oportunismo militante (e com a agravante de ser financiado pelo Estado português, que somos todos nós!) que se verifica na Ciência portuguesa, nem tão pouco aceito de bom grado a convivência de raças de alegados senhores com presumíveis servos, num ambiente que se quer de franca discussão no sentido de criar conhecimento. Não acredito nas interpretações idiossincráticas e frequentemente abusivas que me querem impingir aqueles que normalmente mais têm a ganhar quando elas são emitidas. Não acredito em heróis, pois o tempo deles se acabou há muito, quando este país perdeu a inocência de ser criado num regime verdadeiramente democrático.

Acredito sim no mérito, na igualdade de oportunidades, na solidariedade; a única hierarquia que concebo é a da intelectualidade, da criação de uma autoridade natural e reconhecida por todos, mas sem nunca descurar que somos todos meritórios da mesma confiança e da mesma atenção, como seres humanos.

Por isso, dou por mim a pensar sobre qual o futuro deste blog, qual o futuro da Ciência nacional, e qual o meu próprio papel futuro no seio deste circo insano. Pelo número ainda baixo de comentários e participações, creio que este fenómeno que iniciei de denúncia e reflexão sobre os contrangimentos da Ciência nacional seja um fenómeno subterrâneo e ainda muito restrito. No entanto, asseguro a todos os meus fiéis companheiros de viagem que a procissão ainda vai no adro, apesar de estes breves momentos de contemplação.

Monday, April 14, 2008

E continuamos a viver na ilusão de que um dia...

Caros companheiros de viagem, começo a ficar com a impressão de que este país institucional, para além de louco, está a tentar activamente transformar os portugueses em loucos. Pelo menos aqueles que ainda resistiam, que vão sendo tentados a alinhar na génese de um processo de enlouquecimento nacional, que vai culminar ou com uma revolução, ou com uma grande tourada à Portuguesa. Falo desse órgão de soberania da Républica da Loucura que é a FCT. Novamente.

Pois é, e eis-nos chegados a Abril do ano da graça de 2008. Para quem teve ideias transpostas para o papel em 2006, e submeteu projectos nessas calendas idas, pode ser que se aproxime o momento da verdade. E digo "pode" porque parece que ninguém sabe realmente de nada. Pelos vistos "é suposto" algo, mas ninguém sabe muito bem o que é que "é suposto", nem tão pouco quando algo "é suposto" acontecer... Eu acho que a FCT devia assumir-se com um slogam, porque seria sinónimo de modernismo: "Se tiver dúvidas, ligue-nos; todos ficaremos a saber menos. Para um Portugal mais ignorante, disque 213924300". Quem liga, desespera, tal a sensação de ignorância generalizada. Fala-se com uma das "meninas" e invariavelmente, sem que eu tenha razões para duvidar da sua honestidade, a resposta surge pronta e monocórdica: "não temos informações a prestar", "não fomos informados dos prazos", "não sabemos quando vai ser constituído o júri de recurso", e para cúmulo um "espero que os resultados dos recursos sejam divulgados antes do próximo concurso". Pois, eu também espero. Será isto que é suposto ser suposto?

Datas de comunicação definitiva de resultados de projectos, nicles. Constituição de paineis de juris de recurso, nem vê-los. Datas de novos concursos, ninguém sabe, nem mesmo sequer se vai haver novos concursos. Data de demissão do presidente, ninguém sabe se a FCT tem presidente.

Mas existe pelo menos uma voz amiga do outro lado da linha (como se eu buscasse amizade através de um telefone...): "Sr. Professor, apresente uma reclamação junto do Prof. João Sentieiro, talvez resulte assim." Logo seguida de uma deprimente manifestação de impotência: "É que nós aqui não sabemos de nada, ninguém nos diz nada". Fico sempre com vontade de depositar um vintém na mão da menina, e acelerar o passo para não ouvir o murmúrio velado do lamento e do choro dela, que ficou no calabouço da Av. D. Carlos I...

Urge reflectir, e agir. Eu cada vez mais acredito que isto é um teste à inteligência, à boa educação, ao sentido cívico dos cientistas portugueses, à paciência, à simpatia, e acima de tudo ao bom senso. Cada vez mais existe menos informação, e simultaneamente nunca se viu tanto anúncio de medidas desenquadradas e avulsas ( e demagógicas, e populistas, e falaciosas) pelo governo. Até onde estamos nós, cientistas portugueses e pessoas de bem, dispostos a aceitar que o nosso esforço intelectual seja desprezado de forma tão descarada por uma organização desorganizada e que serve unicamente projectos políticos pessoais? Esta é a questão que deixo aqui: até onde estamos dipostos a deixar que gozem connosco?

Thursday, April 10, 2008

Alguém está atento?

Meus amigos, não há fome que não dê em fartura. De repente, parece que a Ciência é assunto de importância nacional: só o Jornal Público, em 3 dias, publicou 18 notícias sobre Ciência!! Não há fome que não dê em fartura - publicaram mais em 3 dias do que provavelmente ao longo do ano transacto inteiro. Será um ímpeto despropositado e inconsequente, para calar as vozes de quem critica esta imprensa de estaticismo e conformismo (para não dizer de compadrio) com o cinzento panorama social, político e intelectual português?? Para mim, que não acredito em coincidências, parece que alguém anda atento, e não sou só eu.

A ver vamos.

Imoralidades, ilegalidades e demais trafulhices

Este campo da Ciência, em termos de abusos e apropriações, é realmente fértil. Quando nós pensamos que já vimos tudo, que nada de imoral ou pouco ético pode ser inventado, há sempre uma cabeça iluminada para questionar este pressuposto, criando mais um tipo novo de atropelo, ou reinventando um velho. É a criatividade científica, no seu melhor, posta ao serviço da intrujice.

O bolseiro de investigação serve o propósito de investigar no âmbito de um projecto. Se o projecto é seu, de autoria moral própria, ou por decreto de um terceiro, essa já uma discussão que ultrapassa este âmbito. Mas numa coisa, todos teremos de concordar, e que inclusivamente é preconizado no estatuto do bolseiro: o bolseiro investiga, e não serve para suprir necessidades permanentes de instituições. Daqui se depreende que um bolseiro que esteja umbilicalmente ligado a um dado projecto, que pode até ter sido contratado para um efeito específico ao abrigo desse mesmo projecto, serve para dar andamento às necessidades inscritas nesse projecto, e não para andar a acudir a outras tarefas que não as inicialmente definidas. Mas isto é na teoria, pois a praxis, como veremos, é bem diferente.

A coberto das mais esfarrapadas, absurdas, inverosímeis e incríveis desculpas, faz-se gato-sapato de algumas pessoas. Eu sei que há bolseiros que ilegalmente prestam serviços em laboratórios, que depois concorrem de forma absolutamente inqualificável com laboratórios privados. Quando se usa mão-de-obra de forma gratuita (o bolseiro nada custa ao laboratório, visto ser pago por uma instituição terceira, muito vulgarmente até pelo Estado por intermédio da FCT), é natural que alguns laboratórios consigam prestar serviços a preços baixíssimos, desvirtuando as sãs regras de concorrência vigentes num mercado competitivo. Então, estamos perante algo de grotesco:
a) o bolseiro frequentemente não recebe por essa tarefa
b) os laboratórios privados, pelo simples facto de terem encargos com o seu pessoal, não têm possibilidade de competir com estas instituições
c) o bolseiro, pago por todos nós, não está a desempenhar as tarefas para as quais é contratado

Para além da imoralidade de se usar gente desviada das suas funções, que nem sequer é paga, e da questão da concorrência desleal com o sector privado, surge aqui uma quarta barbaridade, que é o destino final do dinheiro que esses laboratórios dos centros auferem pela prestação dos serviços prestados pelos bolseiros. E falo de muito dinheiro.

E aqui chega-se a mais um cancro do sistema científico nacional, que são os sacos-azuis. Existem situações de serviços prestados ilegalmente pelos centros de investigação (ou pelo menos por alguns dos seus laboratórios) pois não é possível facturar essa prestação de serviço. Nem o bolseiro passa recibo, nem tão pouco esses laboratórios têm contabilidade organizada para poderem facturar esse serviço que prestam. E é natural que em algumas áreas, dada a pouca aposta do sector privado na Ciência (se virem bem, os investimentos são astronómicos e por vezes proibitivos) há só instituições informais de vão-de-escada, sedeadas em centros de investigação (inclusivamente laboratórios associados) e que só usam bolseiros-escravos metidos nestas maroscas. O dinheiro entra, sem qualquer controlo, para servir os mais variados propósitos. Nem me atrevo a imaginar quais, pois como está bom de ver, não tenho nenhum saco azul ao meu dispôr.

Chega-se ao cúmulo de haver empresas legítimas que, aceitando esta promiscuidade, contratam estes "serviços" pois não conseguem sequer realizar algumas das técnicas que são requeridas, no âmbito de processos de tomada de decisão, de controlo de qualidade ou inclusivamente judiciais.

Uma vez, soube de um bolseiro que foi colocado perante a seguinte situação, pelo seu chefe: "só lhe pago se for você a angariar os seus proprios clientes". E eu soube disto porque ele mo contou pessoalmente. Que ciência é esta?

E quem dirige este tipo de instituição? Naturalmente, os Al Capones do sistema científico nacional, que são quem usufrui de verbas que jorram sem qualquer controlo. Mais uma vez, a realidade ultrapassa a ficcção.

Thursday, April 3, 2008

Breves apontamentos e longas memórias

Há cerca de duas semanas, fui visitar alguns ex-colegas e amigos ao laboratório associado onde me doutorei. Fui tratar de umas questões relacionadas com um projecto que tenho com um amigo que lá trabalha, e aproveitei para dar à língua com algumas pessoas que conheço, mas que já há uns anos não via. Aproveitei para me inteirar das promoções, das reformas, das mortes, dos abandonos e das continuidades de que é feita a vida das instituições. E é claro, como sou cidadão português, e até gosto de uma boa sardinhada, não resisti a alguns minutos de corte na casaca e maledicência gratuita. Que diabo, sou um ser humano... e a tentação é sempre grande.

A meio da conversa, e visto esta ter sido conduzido com responsáveis administrativos, entrou uma jovem no gabiente destes, com todo o aspecto, pela sua juvenilidade, de ser uma bolseira recém-licenciada. E, apesar de eu me encontrar presente na sala, a jovem colocou uma questão relativa ao que tem de fazer para solicitar a rescisão de um contrato de uma bolsa da FCT. Como casos destes são raros, e inclusivamente a aluna em causa provinha de um laboratório que conheço de ginjeira (principalmente pelos problemas graves causados pela responsável, que incluíram no passado conflitos insanáveis com alguns dos seus membros), fiquei perplexo. Quando instada a consubstanciar as razões do pedido de rescisão do seu contrato, a aluna desbafou: "são-me exigidas tarefas que estão muito para além do estabelecido no contrato, eu acho que isso é um abuso". Pois... não fiquei surpreendido, aliás, tive as minhas piores expectativas confirmadas.

Tudo estava na mesma.

O que se passa é que lamentavelmente o sistema de controlo das funções dos bolseiros é ainda (e será sempre, já veremos...) uma miragem. Não há interesse em regulamentar as responsabilidades dos bolseiros, e muito menos em instaurar eficazes medidas de controlo de horários, funções, responsabilidades, atribuições... Assim, muitos bolseiros (principalmente os BTIs) estão normalmente dependentes das vontades dos coordenadores dos projectos, por mais arbitrárias, aberrantes e selvagens que sejam. É claro que conheço casos em que não há abusos (eu mesmo esforço-me por ser justo para com os bolseiros que estão sob a minha alçada nessas condições) mas existem inevitavelmente abusos sistemáticos, e que permitem que se ponha o bolseiro a render, e muito!. A natureza humana permitiu o esclavagismo; porque não havia de impedir o abuso desta posição dominante sobre o bolseiro?

Mas a moral desta crónica é que, felizmente, embora de forma ainda incipiente e algo paulatina, se começa a notar que as pessoas têm uma outra atitude, de maior exigência de cumprimento dos seus direitos. Começa a falar-se abertamente de segurança social justa, de greve, de discutir opções, ou em último caso, de rescindir o contrato de trabalho. Para complementar esta estado de coisas, eu somente pergunto: para quando uma tomada de posição da FCT no sentido de civilizar algumas práticas neo-esclavagistas bárbaras, do conhecimento de todos, e que só servem para afastar muita gente válida das lides da Ciência? Para quando a instauração da lista negra dos sacanas, proxenetas científicos e dos artistas de circo, de modo a impedir reincidências? Para quando um mínimo de protecção laboral, no sentido de dignificar esta actividade de cientista?

Eu cá não sei, mas que a aluna se demitiu, demitiu. E que a responsável ficou desagradada, ficou. E muito. Eu por acaso até gostei.

Comentário no Jornal Público 3/4/2008

Por respeito e por vergonha, sempre esperei nunca ler afirmações deste tipo. Li a total desfaçatez e deslocamento da realidade, que só se desculpa a uma pessoa analfabeta e sem qualquer responsabilidade governativa. Agora ouvir isto ao Ministro da tutela?? É tão fácil desmistificar isto: basta ver o número de licenciados inscritos nos centros de emprego, após os concursos de colocação de professores. Ou ir aos centros de investigação e ver os escandalosos regimes de voluntariado ou de vencimentos de miséria encapotada que se praticam por falta de alternativas profissionais válidas.

Tuesday, April 1, 2008

Esclarecimento

Gostaria de deixar aqui um esclarecimento, que pela leitura das minhas palavras pode ter havido uma interpretação duvidosa. Eu não acho que para falar de biologia só devemos ter biólogos. Aliás, qualquer um de nós que faça Ciência sabe que a multidisciplinaridade é absolutamente fundamental, e que novas abordagens não quer dizer que sejam menos válidas. Aceito que para falar de qualquer assunto que seja, qualquer formação é válida, desde que se respeitem os preceitos-base de uma convivência democrática. Se para além de física, um físico percebe de biologia, tanto melhor para ele, para nós e para todos.

Agora, a questão que eu quis tocar não é essa. O que eu quero dizer é que lamento que uma estação de televisão paga por todos nós se ache refém de confiar num não-expert para seleccionar alinhamentos de cientistas para virem falar e discutir temáticas que nem de perto nem de longe o host domina. Por uma razão simples: o host não tem capacidade de avaliação, nem sentido crítico, para saber se o seu convidado está ou não nos limites da Ciência na área em questão. Eu assumo que posso falar de física, mas eu não sei se todos os físicos de uma faculdade de Ciências são bons; como não os posso chamar a todos para falarem na televisão, cometo o erro grosseiro de só chamar os "chefes", que muitas das vezes são pessoas já demasiado distantes das descobertas e só têm perspectivas generalistas dos assuntos??? Percebem agora onde pretendo chegar???

E depois, será que são os chefes quem mais precisa de publicidade e de promoção dos seus trabalhos??? Pelos vistos são!!!

Com a agravante de durante uma temporada, este programa televisivo ter sido baseado na prata da casa, e proveniente do instituto de onde o host emana. Resumindo: apareceu lá gente bem fraquinha, e a falar de cor de coisas que tinha lido na véspera... digo isto, porque os conheço, infelizmente alguns até pessoalmente.

Lamento depois é o efeito que isto tem na opinião pública: passa-se a associar uma imagem de cientista a um conjunto bem arquitectado de personagens e de ladaínhas politicamente correctas, em que as eminências pardas em tudo concordam, sem que haja a frontalidade de se assumir que fazemos uma Ciência de capelinhas. Eu compreendo que para o canal em questão, que ainda por cima é um canal público regional e em afirmação, que seja de vital importância a manutenção destes laços, mas eu pergunto: só há estes "cientistas" em quem confiar para a elaboração deste tipo de iniciativas? Será que estas iniciativas, com este formato e com este tipo de contribuição, não passam inevitavelmente a ser aborrecidas, não se transformam na "voz do regime", não se assumem como repetitivas e a saber sempre ao mesmo, em virtude de terem intervenções das mesmas pessoas? O que diriam os nossos melómanos de serviço se todas as sinfonias fossem dirigidas pelo mesmo maestro? Será que programas destes não deveriam ser elaborados com base em sugestões de mais do que 3 ou 4 cientistas? Será que não seria mais útil trazer sangue bem mais novo, avesso à endogamia instituída, para estas andanças?

São questões que ficam a debate. Podem parecer de menor importância, mas toda esta conjuntura ajuda a criar uma verdadeira camisa de forças que prende e limita este país. Como se não houvesse alternativas válidas, quando elas estão aí, bem vivas e com o sangue na guelra.