Recebi ontem um mail que circulou num grande (talvez o maior) laboratório associado nacional, que um amigo doutorado me enviou. Emanava de uma individualidade sobejamente conhecida do panorama científico nacional, dessas que aparece na televisão e almoça com o Presidente da Républica, e nesse mail essa individualidade insurgia-se contra uma questão de política científica. Acredito piamente que deve ter sido consultada sobre essa mesma questão política, mas como a sua teoria não vingou e a resolução foi mesmo avante, a dita criatura inspirou-se na raiva da frustração de ter perdido, e escreveu. Citou James Watson, que até está num fraquíssimo momento, para dizer que o tamanho não é documento (onde já terei eu ouvido isto?) para justificar que nem sempre fusões, aquisições, aglutinações ou outras alucinações são a melhor via a seguir para a Ciência Nacional. Basicamente, a criatura advogava que não é pelos simples facto de sermos muitos que seremos melhores. Pessoalmente concordo.
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Mas o pior estava para vir.
Para além da simples questão do anglicismo extremo, de quem se quer dar ares de ter estado "muitos anos no estrangeiro", o que já de si é uma atitude provinciana, a dita criatura teceu comentários pouco abonatórios da comunidade de investigação afecta ao tal Laboratório Associado. Como se ela não fosse também elemento do mesmo... Acho giríssimo quando as pessoas sacodem a água do capote para acusar os outros das maiores ignomínias, esquecendo o célebre e afamado princípio do "par acção-reacção". Contextualizemos: a criatura lamentava-se de que dificilmente seríamos alguém pois abundam os por ela designados "investigadores-de-graças-a-Deus-que-é sexta-feira". E que bastaria um pequeno relance dos poucos automóveis estacionados no parque do Laboratório Associado ao sábado à tarde para se compreender a fraca estirpe de investigadores que temos.
Comentários naturais: eu compreendo que quando se atinge um topo de carreira e não se tem mais o que fazer, se dedique todo o seu tempo a algo que lhe impeça a instalação progressiva de Alzheimer. É como jogar à sueca no parque. Mas condenar os outros por ter vida própria, quando ao longo de décadas de vida, esta criatura pouco ou nada de próprio teve, exceptuando os artigos, é hipócrita. Acho que ninguém pode assumir tacitamente uma posição de pseudo-liderança que faça com que as pessoas abominem os fins de semana. Eu usufruo deles, juntamente com os meus filhos, mulher e restante família. Se a criatura não consegue ou não gosta dos fins de semana, então que não venha carpir publicamente pelo que de errado optou na sua vida, apontando, qual virgem ofendida, o hirto dedo acusatório da moral e da abnegação científica. Porque aliás, já a vi em festas a gozar o momento, e salvo o erro, era sábado.
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A questão dos automóveis é interessante. Quem avalia a produtividade científica de um centro de investigação pelo número de automóveis estacionados ao Sábado à tarde no parque está noutra galáxia. E eu que andei estes anos todos a achar que era pelo número e qualidade das publicações, pelos projectos financiados e pelos alunos afectos a esse projecto! Que errado estive eu em pensar que a qualidade se avalia pelo factor de impacto das publicações, pelo número de patentes e de ciência transferida para empresas, pelo número de spin-offs... E merece considerações: se for ao Sábado de manhã, conta como critério de avaliação? E já agora, qual a importância da marca, cor, número de portas e extras que o carro pode trazer? E a distinção entre utilitários e monovolumes? E a subtileza da diferença entre monovolumes e SUVs? É que a fazermos uma avaliação exaustiva destes parâmetros, temos de ser sérios e objectivos.
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A outra vertente dos automóveis pode ter a ver com uma consciência ecológica que os cientistas devem ter. Se calhar, a criatura está a avaliar mal, porque é provável que os investigadores estejam todos a trabalhar nos seus projectos e a produzir ciência, mas tenham vindo trabalhar ao Sábado de transporte público, a pé ou de bicicleta. Temos de ter formas de aferir isto, porque até pode ser um bom indicador que salve a face dos investigadores.
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Como é que alguém que gere um grupo de investigação pode fazer comentários sobre a vida interna de outros grupo de investigação? Que moral de pacotilha e de candidato a ditador de bairro assiste este tipo de comentários, ou que conhecimento pode a criatura invocar para lançar a suspeição de preguiça sobre centenas de pessoas? Pesoalmente, assumo que dou total liberdade aos meus alunos para virem trabalhar quando quiserem, pois só partindo de um princípio de responsabilização é que se geram laços de respeito entre as pessoas. E não me querendo gabar, se calhar a minha produção científica per capita até será superior à dessa criatura. Mas "isso agora não interessa nada".
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Não irei propositadamente comentar o desempenho docente da pessoa em causa.
Bola na trave.
Quando a Carta Europeia do Investigador, instrumento regulamentador das relações laborais no seio da actividade de investigação científica internacional (na esfera europeia, naturalmente) vem cada vez dar um maior pendor de profissionalização à actividade, surgem os esclavagistas que defendem estes quintais moralmente indefensáveis. Surgem as recriminações e as acusações absurdas, baseadas em dúbias interpretações meramente emocionais, surge o argumento de que "no meu tempo é que era", que a investigação não se faz "das 9 às 5", que é preciso um esforço sobre-humano para se ser cientista. E estas pessoas contradizem-se: se por um lado, apontam as virtudes de um modelo internacional (mais anglo-saxónico, até), não o avaliam correctamente. Em todos os laboratórios por onde passei, trabalhar ao fim de semana é possível, mas não é norma. As questões familiares e de equilíbrio pessoal, emocional e intelectual, que estão na base do documento supra-citado, não se coadunam com visões autoritárias, neo-esclavagistas e fascizantes do que alguns acham que deve ser a Ciência.
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Apito final. Vitória por 5 argumentos a 1.
Rescaldo: o que mais me enerva nestas considerações é a questão da pretensa superioridade moral com que as vacas sagradas da nossa praça lançam sentenças e se acham no direito de proferir as mais bastardas alarvidades, enlameando tudo e todos. E depois, naturalmente, a sensação que fica de impunidade, e de dependência e deferência com que muita gente os encara.
Tuesday, January 29, 2008
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1 comment:
Bem... pensava eu que em todos estes anos de Ciência já havia visto de tudo! Engano! Faltava isto....
Uma resposta cobarde, feita ao escudo do anonimato, a uma opinião de alguém que merece todo o respeito dos seus pares.
Meu caro André Silva (quem quer que seja...), a "dita criatura", como lhe chama, tem direito a tomar uma posição sobre uma decisão que afecta o seu próprio Instituto e para a qual nem ela, nem a maioria dos restantes Investigadores, foram tidos ou achados! Não estando na posse de todos os detalhes que envolvem a criação do tal I3S, do que me é permitido aferir, parece-me tratar-se de mais um devaneio de dois ou três senhores que, ao invés de garantirem a qualidade científica dos Institutos que dirigem, se lembraram de "dar à luz" um consórcio que, aposto, pouco ou nada irá alterar do dia a dia dos investigadores que afecta, irá sim roubar a identidade a cada um dos 3 institutos.
Partilho pois das preocupações da Professora.
Em relação ao número de carros nos parques e ao "graças a Deus que é Sexta", meu caro André Silva, deixe-me que lhe diga que, salvo honrosas excepções, é esta a realidade da Ciência em Portugal: Fraca e feita por gente fraca. Se não concordar, poderá rebater esta minha visão da Ciência portuguesa enumerando meia dúzia de grupos/líderes de grupo portugueses que sejam vistos como referências internacionais na sua área, com uma produção científica pautada por artigos em revistas de elevado factor de impacto... custa não custa?
É muito mais fácil tentar calar (nem que seja recorrendo ao insulto fácil) aqueles que põem o dedo na ferida do que admitir que também nós somos parte dessa ferida! Porque em Portugal tornou-se moda falar de Ciência. Não há político que se preze que não mande o seu bitaite e lá vá sublinhando o quão importante é a aposta na Ciência. Infelizmente a realidade é que o "Rei vai nú"... e se continuarmos a negá-lo ou recusarmos admiti-lo, então este desfile vergonhoso irá continuar por muitos anos. Eu não vou ficar sentado a aplaudi-lo! Felizmente a Professora ainda tem forças (e paciência!!) para fazer ouvir a sua voz. E por muito que lhe custe, fá-lo cheia de razão!
Cumprimentos e boa sorte para a sua Ciência!
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