Friday, May 25, 2007

Somos uns desgraçados, mas enquanto houver para copos e preservativos, a vida vive-se...

Pois é, de facto todos falam, e em Portugal a Ciência é mais conversa do que outra coisa. Fala-se mais sobre submeter projectos do que submeter projectos, propriamente dito; fala-se mais sobre as obrigações do Estado, do que fazer cumprir essas mesmas obrigações; fala-se mais sobre os direitos dos bolseiros do que fazer cumprir os deveres dos bolseiros... Conversa de chacha, enfim, que vai alimentando as ambições governativas de uns, enchendo as ambições do ego de outros, e esvaziando de esperança toda uma geração de incorruptíveis. E é dessa geração que pretendo falar no post de hoje.

Este post é para falar sobre a figura do bolseiro, das suas vicissutudes, das suas limitações, das injustiças (algumas....) de que são alvo, e de todas as incongruências que na minha opinião, minam toda a credibilidade que este grupo profissional deveria ter - mas não tem

A partir do final da década de 80, começou a instituir-se a noção peregrina de que na Ciência só se entra com a bolsa, o que até certo ponto faz sentido. A entrada, seja no que for, é raramente um tempo de certezas, mas muito mais frequentemente, é uma época de aprendizagem, de iniciação, ou como tão hoje há quem goste de designar, de "formação". Portanto, tornou-se comum a especialização na aprendizagem dos futuros cientistas, que não estavam bem a desempenhar uma actividade profissional, mas sim a aprender. Era mais do que óbvio de que esta seria a priori uma situação mais do que transitória, uma mera etapa na vida dos futuros cientistas, e de que, sendo um estádio na evolução, não mereceria a atenção do legislador em termos de pequenas "minhoquices" como a questão da protecção na doença, a maternidade/paternidade, a segurança social e os demais direitos sociais. E o Estado, por intermédio da pioneira JNICT, permitiu o acesso de centenas ou até milhares de eventuais cientistas a uma verba mensal, à moda de ordenado, para que se fizesse face às necessidades individuais, como comer e comprar tabaco, alugar uma casa, enfim, um laivo de normalidade.

Mas tal como a JNICT mudou de nome ("o mundo é composto de mudança..."), também esta figura de protecção social incipiente (qual abono dos pobres) mas sómente da qual poucos beneficiavam passou de excepção a regra. O número de bolseiros, a partir da década de 90 e com o advento da JNICT travestida em FCT, disparou, e os concursos para atribuição de bolsas tornaram-se corriqueiros, ritualizaram-se e assistiu-se a uma verdadeira deificação da figura paternalista da FCT. Fez-se uma entidade patronal da noite para o dia, sem que o Estado percebesse que o enquadramento da figura de bolseiro mudara radicalmente em míseros 10 anos. De experimentadores incipientes e pouco numerosos, os bolseiros assumiram-se como a força motriz do sistema científico nacional, sem que haja sequer discussão em torno desta situação - é tão somente um dado adquirido.

Mas o paternalismo, no qual a sociedade portuguesa é pródiga (após 50 anos de fascismo, todas as formas de estupidez são naturalmente abundantes), continuou a soerguer-se na relação, no vínculo, na dependência dos bolseiros relativamente à FCT. Se é verdade, e acima de tudo legítimo, exigir direitos como consequência da assumpção de um papel de relevância (e não me canso de dizer que os bolseiros são fundamentais no SCN), também é NORMAL exigir direitos como consequência dos deveres. Em suma: os bolseiros cumprem, e sem eles o sistema pára; mas não sabem usar esse argumento em seu favor, ou quando o usam, fazem-no de uma forma tão pouco séria que nem são encarados como parceiros de negociação. Lembram-se do que o Sentieiro disse, a propósito de uma situação em que alguns bolseiros piratearam o website da FCT e divulgaram informação confidencial? "Eu não mais falarei com bolseiros" Sentieiro dixit. O patrão recusa dialogar com os empregados. Il Duce não diria melhor.

Na velha lógica do séciulo XIX, emanada do anarco-sindicalismo, aqui os bolseiros teriam uma de duas alternativas: a greve geral (que não me parece servir os interesses de quem quer que seja, principalmente os dos bolseiros, que são quase profissionais liberais - trabalham para eles, e depois a Ciência, e para os centros, e deixam esse altruísmo para segundas núpcias...) ou assumirem um papel de credibilidade, que só se conquista após se darem provas de maturidade, de objectivos a longo prazo, e de se demosntrar que se consegue assumir um compromisso responsável. Mas não é nada disto que se vê.

Vejamos os factos: existe uma associação de bolseiros, que até já existe há uns bons anos, que mais não faz do que manifestar a sua existência. É completamente autofágica, e serve para existir; não é minimamente representiva de nada, a não ser dos 30 bolseiros (num universo de, calcula-se, 8000...) que habitualmente participam nas demonstrações estalinistas de afecto para com uma causa nebulosa; enverga uma mortalha de pioneirismo balofo, que espelha aquilo que de pior existe na sociedade portuguesa, que é a ruralidade de pensamento, uma apatia envergonhada, uma reactividade pintada de inovação atenta, uma boçalidade e um vazio de ideias e de propostas medonha. E depois faz por aparecer a espaços, uma vez por ano, com actividades de psuedo-manipulação dos media, que só fazem rir de contentamente os ministros e os ministeriáveis deste país. Assim, não vão lá. Aliás, não vamos lá, nenhum dos actores da ciência.

Mas pior do que esta associação, que até tem o mérito de tomar café em grupo, é o panorama da acomodação bolseira. "Há bolsa para além da bolsa", parece ser o pensamento dominante - e isto é particularmente mau, porque não é verdade. Aquilo que era para ser transitório é hoje definitivo, e funciona como um Bojador, para além do qual (leia-se, fim da bolsa) só existe morte, abandono e desespero. Pensa-se a curto prazo, para um período igual ao da duração da bolsa. Vive-se de bolsas; há uns anos rebentou o escândalo dos titulares ad eternum do rendimento mínimo garantido, ou dos profissionais da baixa médica; estou à espera de ver a rebentar o escândalo do bolseiro por tempo indeterminado. Hoje investiga-se porque não se sabe fazer outra coisa, muitas vezes sem brilho, sem dedicação, sem vontade de investigar. "Estou aqui porque o meu curso não tem saídas, e é melhor uma bolsa do que o desemprego" - ouvi isto centenas de vezes na minha carreira. E continuo a ouvir, e tenho a certeza de que ouvirei muitas mais vezes, sem que as "vítimas" identifiquem o agressor e exijam punição adequada. É um sindroma de Estocolmo colectiva, esta patologia de que sofre a maioria dos bolseiros - gostam de apanhar chapada e de ficar placidamente a engraxar os chefes, sem pensar no dia de amanhã. É o triste fado do Calimero, século XXI: "Somos uns desgraçados, mas enquanto houver para copos e preservativos, a vida vive-se..."

E o Estado a pactuar, e a pagar. Copos e preservativos. E os curricula vitae dos orientadores a engordar. Pouca vergonha.

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