Thursday, April 3, 2008

Breves apontamentos e longas memórias

Há cerca de duas semanas, fui visitar alguns ex-colegas e amigos ao laboratório associado onde me doutorei. Fui tratar de umas questões relacionadas com um projecto que tenho com um amigo que lá trabalha, e aproveitei para dar à língua com algumas pessoas que conheço, mas que já há uns anos não via. Aproveitei para me inteirar das promoções, das reformas, das mortes, dos abandonos e das continuidades de que é feita a vida das instituições. E é claro, como sou cidadão português, e até gosto de uma boa sardinhada, não resisti a alguns minutos de corte na casaca e maledicência gratuita. Que diabo, sou um ser humano... e a tentação é sempre grande.

A meio da conversa, e visto esta ter sido conduzido com responsáveis administrativos, entrou uma jovem no gabiente destes, com todo o aspecto, pela sua juvenilidade, de ser uma bolseira recém-licenciada. E, apesar de eu me encontrar presente na sala, a jovem colocou uma questão relativa ao que tem de fazer para solicitar a rescisão de um contrato de uma bolsa da FCT. Como casos destes são raros, e inclusivamente a aluna em causa provinha de um laboratório que conheço de ginjeira (principalmente pelos problemas graves causados pela responsável, que incluíram no passado conflitos insanáveis com alguns dos seus membros), fiquei perplexo. Quando instada a consubstanciar as razões do pedido de rescisão do seu contrato, a aluna desbafou: "são-me exigidas tarefas que estão muito para além do estabelecido no contrato, eu acho que isso é um abuso". Pois... não fiquei surpreendido, aliás, tive as minhas piores expectativas confirmadas.

Tudo estava na mesma.

O que se passa é que lamentavelmente o sistema de controlo das funções dos bolseiros é ainda (e será sempre, já veremos...) uma miragem. Não há interesse em regulamentar as responsabilidades dos bolseiros, e muito menos em instaurar eficazes medidas de controlo de horários, funções, responsabilidades, atribuições... Assim, muitos bolseiros (principalmente os BTIs) estão normalmente dependentes das vontades dos coordenadores dos projectos, por mais arbitrárias, aberrantes e selvagens que sejam. É claro que conheço casos em que não há abusos (eu mesmo esforço-me por ser justo para com os bolseiros que estão sob a minha alçada nessas condições) mas existem inevitavelmente abusos sistemáticos, e que permitem que se ponha o bolseiro a render, e muito!. A natureza humana permitiu o esclavagismo; porque não havia de impedir o abuso desta posição dominante sobre o bolseiro?

Mas a moral desta crónica é que, felizmente, embora de forma ainda incipiente e algo paulatina, se começa a notar que as pessoas têm uma outra atitude, de maior exigência de cumprimento dos seus direitos. Começa a falar-se abertamente de segurança social justa, de greve, de discutir opções, ou em último caso, de rescindir o contrato de trabalho. Para complementar esta estado de coisas, eu somente pergunto: para quando uma tomada de posição da FCT no sentido de civilizar algumas práticas neo-esclavagistas bárbaras, do conhecimento de todos, e que só servem para afastar muita gente válida das lides da Ciência? Para quando a instauração da lista negra dos sacanas, proxenetas científicos e dos artistas de circo, de modo a impedir reincidências? Para quando um mínimo de protecção laboral, no sentido de dignificar esta actividade de cientista?

Eu cá não sei, mas que a aluna se demitiu, demitiu. E que a responsável ficou desagradada, ficou. E muito. Eu por acaso até gostei.

1 comment:

Filipe said...

Os senhores "barões" das universidades se se quiserem aguentar muito tempo nos seus poleiros têm de lutar também pelos interesses da classe operária (jovens investigadores) ! Se não o fizerem arriscam-se a que lhes aconteça mais cedo ou mais tarde (pelo menos metaforicamente) o mesmo que aconteceu aos aristocratas franceses durante a revolução francesa.